Por: Sarah Cristinne Firmino
O que faz uma música de décadas passadas viralizar nas redes sociais e se tornar febre entre jovens que sequer haviam nascido quando ela foi lançada? Qual é o segredo para uma canção ultrapassar as barreiras do tempo, tornando-se atemporal e atravessando diferentes gerações, linguagens e tecnologias? Esse fenômeno se desdobra em dois movimentos principais: de um lado, músicas antigas que ressurgem nas redes com seus áudios originais, impulsionadas por memes, estéticas nostálgicas ou trends visuais. De outro, composições retrabalhadas por novos artistas, que inserem batidas, samples e efeitos contemporâneos, recriando os sons de outrora sob uma nova lógica cultural e mercadológica.
Um caso notável do primeiro grupo é o da canção “Pretty Little Baby”, gravada pela cantora americana Connie Francis em 1962. Sessenta anos após seu lançamento, a faixa viralizou misteriosamente no TikTok, sendo usada em mais de 1,5 milhão de vídeos com estética retrô, imagens de bebês, pets e cenas delicadas do cotidiano. Celebridades como Kris Jenner e Kylie Jenner aderiram à trend. Surpresa, Connie reagiu com bom humor:
“A primeira vez que soube disso foi quando [um amigo] ligou para me informar que eu tinha ‘um hit viral’ Claramente desatualizada com a terminologia musical dos dias atuais, minha resposta inicial foi: ‘O que é isso?'”, relatou em seu perfil no Facebook. “Obrigada a todos!” completou.
Já no segundo fenômeno (o das ressignificações sonoras), temos o exemplo do hit “Say It Right”, de Nelly Furtado (2006), remixado em versão eletrônica que voltou às paradas graças à viralização em vídeos de maquiagem e dança. No Brasil, artistas como DJ Lucas Beat vêm realizando versões de clássicos do forró, arrocha e brega com batidas eletrônicas e efeitos modernos, que conquistam milhões de visualizações. Algumas dessas músicas sequer tiveram êxito comercial em seu tempo original, mas ressurgem como fenômeno por meio de memes, trends ou vídeos curtos.
Outro exemplo emblemático é a faixa “Morango do Nordeste”, originalmente lançada por Lairton e Seus Teclados no início dos anos 2000, que ressurgiu em versão remixada nas mãos de DJs e produtores de piseiro digital. O novo arranjo, com beats mais rápidos e graves acentuados, viralizou entre jovens que não conheciam a versão original, criando uma espécie de “nova memória” para a canção. Casos como esse mostram como a cultura digital brasileira também participa ativamente dessa reescrita sonora do passado – nem sempre com a intenção de preservar, mas certamente com o poder de reconectar. Nesse processo, a música não é apenas revivida: ela é recontextualizada.
No Brasil, a prática de revitalizar músicas antigas tem se manifestado de forma intensa nos festejos populares. Um caso recente de ampla repercussão foi o comentário feito pelo cantor de forró, Flávio José, durante o São João 2024 em Campina Grande, terra do Maior São João do Mundo. Ao perceber que sua música “Tareco e Mariola” estava sendo executada em versão eletrônica, com batidas e efeitos que descaracterizaram o baião original da sua criação, o artista declarou publicamente: “Estão descaracterizando nossa música. Isso não é homenagem, é desrespeito com a cultura nordestina.” O episódio gerou debate nas redes sociais e na imprensa local, escancarando o conflito entre a valorização da tradição e as novas formas de consumo musical. Casos semelhantes já haviam ocorrido com outros artistas do forró, como Alcymar Monteiro e Santanna, que também questionaram o uso “distorcido” de suas composições em trilhas de festas ou em remixes populares no TikTok.
Num mergulho mais profundo, vemos que fenômeno ocorre desde os tropicalistas, que já incorporaram gêneros regionais ao rock e à psicodelia, até os artistas contemporâneos que remixam o brega ou o sertanejo com beats eletrônicos. Casos como o da canção “Telefone Mudo”, da banda Trio Parada Dura, que virou remix eletrônico em festas de piseiro, ou a regravação da música “Meu Pedaço de Pecado” de João Gomes com levadas do funk carioca, demonstram como a cultura popular brasileira também participa dessa atualização estética, muitas vezes sem romper totalmente com suas raízes.
Essa tensão expõe um embate geracional e cultural sobre autoria, memória e pertencimento. Por um lado, as reinterpretações são pontes que conectam diferentes épocas e públicos. Por outro, levantam debates sobre os limites da apropriação e da fidelidade à obra original. A questão que se impõe é: estamos diante de um fenômeno de celebração da memória ou de descaracterização cultural?
Na era digital, onde o tempo é acelerado e os produtos culturais se tornam obsoletos em questão de dias, as músicas parecem mais descartáveis do que nunca. As canções viram “chiclete” e desaparecem na mesma velocidade com que viralizam. Esse ciclo de viralização e esquecimento é reforçado pelas lógicas algorítmicas das plataformas de streaming. O Spotify, por exemplo, organiza seus rankings diários com base em picos de audiência, o que faz com que hits explosivos, como versões remixadas ou músicas trending no TikTok, permaneçam no topo por poucos dias antes de desaparecerem.
A prática do sample, aliás, remonta aos anos 1970, com as primeiras experiências no hip hop, quando DJs utilizam trechos de músicas antigas em novas bases. O movimento cresceu ao longo das décadas com o avanço das tecnologias de mixagem e, atualmente, se popularizou globalmente graças aos softwares de produção acessíveis e às redes sociais como veículos de difusão massiva.
É nesse ambiente de remix, memória e cultura digital que a música contemporânea se constrói. A tensão entre homenagem e apropriação, entre reinvenção e descaracterização, reflete um cenário cultural em constante negociação. Ao mesmo tempo que nos perguntamos se vivemos uma era de músicas efêmeras, também podemos enxergar nesses gestos de resgate uma tentativa legítima de reconectar passado e presente por meio de novas estéticas.
A ressignificação de músicas antigas, portanto, não se limita apenas a uma estratégia de mercado ou a uma busca por curtidas e visualizações. Ela mobiliza camadas profundas da experiência cultural coletiva, funcionando como elo entre gerações e como atualização contínua daquilo que consideramos tradição. As canções reaparecem como testemunhos de uma memória viva, uma memória que não é estática, mas em permanente negociação com o presente. O remix, o sample, o mashup não são apenas recursos técnicos: são também gestos culturais que dizem muito sobre nossa forma de lidar com o tempo, com a escuta e com o outro.
Em tempos de hiperconectividade e efemeridade, a capacidade de reativar o passado sonoro talvez seja um dos modos mais potentes de reinvenção simbólica. A música, como prática cultural, está sendo reterritorializada nas plataformas digitais e redes sociais. E, nesse processo, não perde sua função de afetar, mobilizar e contar histórias. Até mesmo divulgar os seus artistas, e refletir a sua época.
O desafio, portanto, não está apenas em lidar com a nostalgia como estética ou como mercado, mas em compreender o que esses ciclos de reaparecimento sonoro dizem sobre a lógica da cultura contemporânea. A viralização de músicas antigas, sejam elas mantidas em seus formatos originais ou transformadas em novas estruturas, não é sintoma de um público desinformado ou de artistas sem repertório, mas sim de uma reorganização profunda nos modos de escuta, apropriação e valorização simbólica da música.
A questão que permanece em aberto é: o que se perde e o que se ganha quando o passado é ativado com tanta velocidade, sem mediação crítica, filtrado por algoritmos e exposto a um consumo volátil? É possível criar vínculos duradouros em meio a esse vaivém de sons reciclados, onde o valor de uma música é medido por engajamento? Ou estamos apenas testemunhando um novo modelo de circulação cultural, mais fluido, fragmentado e participativo, mas não necessariamente menos significativo?
Em vez de respostas definitivas, é essa complexidade, com suas contradições e potências, que precisa estar no centro do debate. Porque entender por que certas músicas voltam é também entender como ouvimos, por que ouvimos e o que esperamos da música em um tempo que transforma tudo em dado, conteúdo e capital simbólico instantâneo



