Iêda Lima: Amor às palavras e disciplina.

Foto: Equipe Tocaia.

 “Meus pais nunca me disseram o que eu deveria ser, mas mostraram, com exemplos de educação e humanidade, o cuidado com o outro”

Campina Grande reencontrou, na sexta-feira 29 de agosto, uma de suas filhas ilustres. Aos 77 anos, após enfrentar uma batalha contra o câncer, a escritora Iêda Lima voltou à cidade natal para lançar o romance “O Resgate”. O evento, realizado no Museu de Arte e Ciência (MAC), reuniu família, amigos, leitores, escritores e autoridades culturais, entre eles Thélio Farias, presidente da Academia de Letras de Campina Grande (ALCG), o diretor do museu, Lucas Olles, e André Brasileiro, representante do Instituto Histórico de Campina Grande. Mais do que um lançamento, foi a celebração de uma vida inteira dedicada ao estudo, ao trabalho e, mais recentemente, à literatura.

Entre revisão e resiliência

Enquanto “O Resgate” passava por revisão crítica, a autora enfrentava um de seus maiores desafios pessoais. Em outubro do ano passado, descobriu que estava com câncer. Em novembro, foi submetida a uma cirurgia e passou três meses afastada da escrita. “Meu vocabulário diminuiu bastante. Eu tinha muito sono, mas lutava contra isso. Eu queria ler, reescrever. E sou disciplinada desde jovem. Disse a mim mesma: vou terminar”, recorda a escritora. Foi um processo lento de recuperação, mas guiado pela persistência. Ao retomar o texto revisado, a emoção foi imediata: “Eu li de novo e pensei: meu Deus, como eu consegui escrever tudo isso? Como ficou bom. Eu precisava lançar.” E assim fez: primeiro em Brasília, onde reside, depois em João Pessoa, em Campina Grande, o lugar onde tudo começou, e pretende lançar ainda em outras cidades como São Paulo e Fortaleza.

A menina que sonhava com os livros

Nascida no bairro do José Pinheiro, em 8 de julho de 1948, Iêda cresceu em uma família simples. O pai trabalhava na feira vendendo carne, e a mãe cuidava da casa. Como filha mais velha, acumulava responsabilidades domésticas, mas nunca deixou de sonhar com os estudos. “Eu gostava muito de estudar, embora tivesse muitas dificuldades. Um professor de português dizia que um dia eu seria escritora”, relembra. O talento se impôs cedo. Conquistou a maior nota no exame de admissão do Colégio Diocesano Pio XI e ganhou uma bolsa de estudos. Aos 16 anos, já dava aulas para ajudar em casa. Foi nesse período que teve um dos aprendizados mais marcantes de sua vida: ao perceber que um aluno dormia em sala de fome; compreendeu, ainda adolescente, a dureza das desigualdades sociais. Essa consciência a acompanharia para sempre, dando lastro humano e ético a toda a sua trajetória. O amor pelos livros dividia espaço com o desejo de compreender o mundo. Iêda formou-se em Economia e Engenharia de Transportes, fez Mestrado e Doutorado na USP e construiu uma sólida carreira no serviço público. Atuou como pesquisadora, secretária de Transportes em Fortaleza e técnica de planejamento no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em Brasília, onde permaneceu até a aposentadoria. Também exerceu cargos de liderança, como Diretora Executiva da Agência Metropolitana de Campinas, e assessora em grandes projetos, incluindo a implantação de uma unidade de Meio Ambiente do metrô de São Paulo. Mesmo em meio às responsabilidades técnicas, a sensibilidade nunca se perdeu. “Meus pais nunca me disseram o que eu deveria ser, mas mostraram, com exemplos de educação e humanidade, o cuidado com o outro”, resume.

A inevitável vocação para escrever

A literatura, que sempre a acompanhou à distância, tornou-se central após a aposentadoria. A provocação partiu da família: Tantas experiências, viagens, trabalhos, prisão durante a Ditadura Militar… Por que não registrar em livro as memórias, os aprendizados, e as reflexões acumuladas em tantos anos de bagagem? Assim nasceram as primeiras obras, como “Um olhar no retrovisor e outro na estrada”. A transição da escrita técnica para a literária aconteceu como um reencontro inevitável e necessário. Hoje, Iêda afirma que sua maior inspiração é a vida coletiva das pessoas: os dramas, conquistas e contradições que moldam a sociedade. “O Resgate”, seu novo romance, mergulha nesse universo ao narrar um enredo de crime, corrupção e dignidade. Mais do que ficção, a obra reflete a preocupação social que acompanha a autora desde a juventude. Entre os sonhos ainda não realizados está escrever para o público infantojuvenil e registrar, em um livro, a história de seus pais. “Escrever para crianças é um grande desafio, porque elas evoluíram muito. Não precisam mais das histórias do lobo mau. É preciso respeitá-las como seres com vontade própria”, afirma.

Entre dor e renascimento

Ouvir a trajetória de Iêda Lima me faz acreditar mais ainda que não importa o tempo ou o caminho, a pessoa é mesmo para o que nasce.  Ao lançar “O Resgate” em Brasília, João Pessoa e Campina Grande, Iêda não entregou apenas um romance ao público. Entregou também a prova de sua resiliência, a vitória sobre a dor e a confirmação de que, aos 77 anos, continua a se reinventar, transformando a disciplina em vocação e vida em literatura.

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