Cabaceiras acaba de ser reconhecida como Capital Paraibana do Cinema. Não é coincidência. É prática cotidiana, economia e identidade.

Cabaceiras é, há décadas, um dos territórios mais férteis do país para a criação audiovisual. Quando uma reportagem internacional decide voltar os olhos para o Cariri paraibano, como ocorreu recentemente, o gesto naturalmente ilumina uma cidade que já vive e respira cinema há muito tempo. Mas Cabaceiras não cabe apenas na moldura que o olhar de fora costuma enxergar. Ela é muito mais complexa, mais profissionalizada e mais consciente de si do que qualquer leitura exógena poderia sugerir, e isso exige outra narrativa. A estética da paisagem árida, tão frequentemente usada para representar o sertão, pode ser atraente para cineastas e fotógrafos, mas Cabaceiras não se sustenta apenas nessa imagem de “faroeste” ou “uma cidade empoeirada no árido nordeste” como começa a matéria “Brazil’s Answer to Hollywood: A sleepy Town of dreams and Droughts” do The New York Times. O que existe ali é um espaço aberto de criação que envolve políticas públicas, formação de profissionais, empreendedores culturais e um movimento local que transformou o cinema em identidade e economia. Cabaceiras possui um ecossistema audiovisual sólido: museus e espaços dedicados a figurinos e cenários deixados por grandes produções; restauração de locações históricas; hospedagens e empreendimentos nascidos diretamente do fluxo de equipes; apoio logístico da prefeitura e da secretaria de Cultura e Turismo; produtores locais que organizam testes, workshops, formações e criação de roteiros baseados em narrativas do território. Mas nada disso aparece no The New York Times!


O CIMM e o cinema que nasce de dentro

Dentro desse ecossistema, o CIMM – Cinema no Meio do Mundo, ocupou recentemente um papel fundamental. Longe de ser uma ação episódica, o CIMM é um coletivo em plena evolução, conduzindo festivais, experimentações, oficinas, formações e produções que revelam novas narrativas e novos rostos. Seu crescimento orgânico tem consolidado uma forma de fazer cinema enraizada no território e atenta às pessoas que o compõem. O diretor Tiago A. Neves, nome nacionalmente premiado, é uma peça-chave dessa construção. Sua obra é marcada por um olhar que devolve protagonismo a pessoas e histórias frequentemente apagadas pelo tecido social, sempre com escolhas estéticas e temáticas que reafirmam um cinema humanizado, político no sentido mais profundo: centrado na dignidade e na singularidade de cada personagem. O CIMM tem sido terreno fértil para esse tipo de abordagem, e Cabaceiras tornou-se palco de seu novo filme, “Asas”.
O curta-metragem “Asas”, gravado na cidade no último mês de novembro, é particularmente importante neste momento, tanto para o coletivo quanto para o audiovisual paraibano. A obra (que aqui não terá spoilers, por respeito ao processo criativo) reúne atores paraibanos como protagonistas, algo (acredite se quiser) ainda raro em produções gravadas no Nordeste. Esses artistas homenageiam suas próprias trajetórias ao mesmo tempo em que revisitam personagens marcantes que já interpretaram, criando uma camada simbólica rica e profundamente local. Entre os nomes estão Luiz Carlos Vasconcelos, Soia Lira, Marcélia Cartaxo, Zezita Matos, Celly Farias, Fernando Teixeira, Valquíria Gonçalves, Gal Cunha Lima, Lucas Veloso, além de outras figuras que já colaboraram com Tiago e que fazem parte da memória afetiva e estética do cinema paraibano… Cabaceiras, além de acolher esses artistas reconhecidos, também se tornou fonte de novos talentos: o elenco de apoio, surgido diretamente de testes realizados na cidade, é resultado da articulação entre formação, oficinas e o próprio trabalho do CIMM. Assim, “Asas” não apenas traz rostos paraibanos como estrelas; os personagens e a própria dramaturgia respiram (metaforicamente) o ar da região, sendo parte intrínseca da história que o filme pretende contar.


Nivaldo Rodrigues: o diretor que o jornal viu, mas não explicou

A matéria destaca Nivaldo Rodrigues no momento em que ele conduzia o teste de elenco de “Asas”, mas o texto não explica quem ele é dentro da engrenagem que sustenta mais esse movimento do cinema em Cabaceiras. Nivaldo não é apenas o profissional que direciona uma cena, e grita “corta!”. Ele é escritor, formador, produtor cultural e audiovisual, articulador e uma das principais forças de organização técnica do CIMM – Cinema no Meio do Mundo.
Há anos, Nivaldo coordena oficinas, prepara moradores para atuar em produções, desenvolve processos de criação e estabelece a ponte entre o que chega de fora e o que nasce da própria cidade. Tudo isso acontece dentro de um ambiente, onde existe o apoio real da Prefeitura de Cabaceiras e da Secretaria de Cultura e Turismo, que garantem infraestrutura, logística e continuidade das ações de formação e experimentação fílmicas. Ao citá-lo sem esse contexto, o New York Times perde a essência: o cinema que existe em Cabaceiras não se sustenta na paisagem, se sustenta em profissionais que assim como Nivaldo, transformam o território em lugar de criação, mas é preciso bem mais que um olhar rápido para detectar.
Cabaceiras não se tornou território audiovisual por acaso, nem por modismo recente. Produções como “O Auto da Compadecida” marcaram a cidade de forma definitiva e seguem atraindo visitantes até hoje, interessados em caminhar por ruas que já foram cenário de uma das obras mais emblemáticas do audiovisual brasileiro, grande marco da cultura nordestina. Esse passado importa, mas Cabaceiras não parou no tempo. Ao contrário: a cidade se atualiza constantemente e se mantém em atividade, recebendo novas produções, formando profissionais e funcionando como um grande set de filmagem a céu aberto. Para além do letreiro turístico e do imaginário já consolidado, existe algo menos visível e mais poderoso: quando uma produção chega, a cidade para, e para por escolha. Ruas são respeitadas, rotinas se organizam, moradores colaboram espontaneamente. Há um sentimento coletivo de honra e pertencimento, como se cada filme fosse também um pouco deles. Cada pessoa ajuda como pode cedendo espaços, cozinhando, costurando, orientando equipes, oferecendo serviços e, com isso, gera renda extra, circulação econômica e continuidade. Esse pacto silencioso entre cinema e cidade é o que mantém Cabaceiras viva como território de criação, e não apenas como lembrança de um clássico do passado. Cabaceiras é muitas vezes tratada como uma cidade parada no tempo, mas essa leitura não se sustenta. Embora preserve traços de uma estética art déco, o município tem comércio ativo, circulação diária e moradores que trabalham dentro e fora da cidade. Essa vitalidade explica por que o cinema funciona ali: Cabaceiras não encena vida, ela vive, e o audiovisual se integra a esse ritmo como parte da sua dinâmica produtiva.
Amilton de Farias Cunha: símbolo de uma nova profissionalização

A matéria também menciona Amilton de Farias Cunha, mas sem revelar a força simbólica e profissional que ele representa. Morador de Cabaceiras, Amilton é ator formado nas oficinas locais, guia turístico e responsável pelo Restaurante e Hospedaria Saca de Lã. Ele se apresenta como “matuto, sim; besta, não”, em suas redes sociais. Uma frase que diz muito sobre como os nativos da região têm sido historicamente tratados: ora como adereço folclórico, ora como caricatura. Mas, sinceramente, acho que já basta.
Esse olhar externo costuma transformar o sertanejo em bibelô, ou “tipo” a ser imitado, enquanto o audiovisual nacional frequentemente relega nordestinos a papéis de figuração, exigindo sotaques forçados e personagens estereotipados de atores que vem dos grandes centros nos representar. “Asas” e outras produções locais, rompem com isso ao colocar, nesse caso, Amilton (e muitos outros) em posições de maior protagonismo, interpretando personagens mais complexos, sensíveis e construídos a partir de sua experiência real. Amilton não é apenas um “rancheiro barbudo”, ele já fez parte de grandes produções, como “Maria e o Cangaço” da Disney+ e tantas outras participações artísticas. E há um ponto crucial que quase nunca aparece nas grandes reportagens: Cabaceiras move uma cadeia econômica inteira quando recebe uma produção. São guias, motoristas, cozinheiras, costureiras, artesãs, pessoas que cedem suas casas, seus animais, seus equipamentos, seus conhecimentos. Há crianças e adultos que se profissionalizam, famílias que se organizam para atender demandas da equipe, serviços que surgem exclusivamente porque o audiovisual se estabeleceu ali. Amilton representa essa virada: um artista que não interpreta o sertanejo de fora para dentro, mas de dentro para fora, com autonomia, técnica e identidade. Ele é parte de uma geração que prova que Cabaceiras não fornece apenas “figurantes”, mas profissionais que entendem o cinema como trabalho, economia e afirmação de quem são.


O que Cabaceiras revela sobre o Brasil com S
A partir de tudo isso, Cabaceiras expõe algo essencial sobre o audiovisual brasileiro: o país não precisa ser comparado a modelos estrangeiros para justificar seu valor. O nosso Brasil com S é autoral, inventivo, múltiplo e profundamente marcado por sua diversidade cultural. O cinema que nasce no Cariri não busca replicar Hollywood, responder a nada, nem servir como “versão exótica” de um padrão globalizado. Ele existe porque seus moradores constroem suas próprias formas de contar histórias, e porque há um ecossistema ativo que dá sustentação a esse movimento. Cabaceiras, portanto, não é apenas um destino que chama a atenção de jornalistas e turistas; é um território que produz, forma, decide e participa. É um lugar onde o audiovisual deixou de ser visita e se tornou casa. E, justamente por isso, merece ser lido não como curiosidade tropical, mas como referência.
Respeitosamente, Sarah Cristinne Firmino.
*FOTOGRAFIAS: João Paulo Lima.





