Novo filme do CIMM traz um relato humanista que busca reflexões sem grandiloquência, abraçando a fragilidade.
Por: Sarah Cristinne F.

Você já esteve tão perto de alguém que as fronteiras se dissolveram? Em “Estopim”, essa dissolução não é metáfora: é latente, memória, desgaste. O novo longa do diretor Tiago A. Neves mergulha no íntimo de uma família de mulheres que, ao cuidar de um pai acometido por uma sorrateira demência, rasga também sua própria história. O filme é o resultado do encontro entre dois coletivos: Cinema no Meio do Mundo – CIMM e Coletivo Atuador (ambos de João Pessoa). “Foi um processo profundo, de muito aprendizado e parceria”, conta a preparadora de elenco e atriz Cely Farias, que resume o espírito coletivo da obra..
A psicologia chama de “síndrome do cuidador” o processo em que familiares passam a compartilhar não só a responsabilidade, mas também o desgaste físico, emocional e social da velhice. Quem cuida também adoece. Quem apoia também envelhece. Essa camada psicológica atravessa a narrativa, transformando a história em um estudo sobre renúncia, perda de si e a fragilidade de quem sustenta o outro. Essa realidade, infelizmente, é recorrente no Brasil, onde o peso do cuidado recai quase sempre sobre as mulheres da família (filhas, esposas, noras), em um ciclo de submissão naturalizada. O filme desnuda esse padrão: mulheres servindo à mesa, caladas diante da autoridade masculina, até que a velhice, a doença e morte impõe uma dolorosa libertação, carregada de culpa. Essa dinâmica revela não apenas um traço cultural, mas também a desigualdade estrutural que inviabiliza essas cuidadoras, sem rede de apoio e sem políticas públicas que as amparem. Ao expor essa ferida, a narrativa não só acompanha uma família em crise, mas lança luz sobre um problema social que persiste, onde amor e obrigação se confundem, e a vida de quem cuida se esvai junto com a de quem é cuidado
Tocaia – Por que escolher esse recorte de família e memória?
Tiago A. Neves – “O cinema tem essa possibilidade de dar voz ao que não é dito. Sempre me interessa o que parece pequeno, banal, mas carrega todo um mundo.”
Longe da pressa da indústria, Tiago reafirma sua assinatura com longos silêncios que permitem o espectador respirar, sentir, e refletir sobre a vida (sua e do outro). As cenas são todas gravadas em plano-sequência, e a câmera não observa, ela se torna presença, quase um personagem sendo os olhos do espectador – que passa a desejar ampliar e se mover, explorando a cena por inteiro, o tempo todo, e isso define muito bem a linguagem única do filme.
O longa-metragem é formado por seis “atos” – cenas encadeadas, que como um quebra-cabeças, se visto de outra ordem pode criar novas estruturas e narrativas. Assisti ao filme no Cine-Teste promovido pelo CIMM, realizado no último dia 06 de Agosto, na capital paraibana. A prática do Cine-Teste acompanha Tiago desde seus primeiros trabalhos. Nesse momento, elenco, equipe e convidados assistem a um corte ainda em construção, aberto a novas perspectivas antes de se fechar. É raro ver um processo tão coletivo e generoso no audiovisual. Como disse o diretor: “O processo tem que ser bom para todo mundo. Não pode atropelar ninguém. É como no teatro: todo mundo constrói junto. Eu só sei fazer cinema desse jeito.”
Tocaia – E o que o Cine-Teste representa dentro desse processo?
Tiago A. Neves – “É um momento de escuta. É o público me ajudando a terminar o filme. Sem essa troca, a obra não seria a mesma.”
Esse espírito também atravessa as atuações. Kassandra Brandão, que interpreta a personagem Rita, descreve o processo como um privilégio: “É a primeira vez que participo de algo assim, ver a montagem e poder opinar. Todo mundo chama o filme de artesanal, e é isso mesmo: um encontro.” Para construir Rita, personagem de falas fortes e desabafos femininos, Kassandra buscou as mulheres da própria família: “Foi importante mostrar que somos diferentes, não inimigas. Rita é um desabafo, não um ataque.”
O CIMM, que em sua trajetória já trabalhou com experimentação de não-atores, amadurece neste novo projeto nessa parceria com o Coletivo Atuador, onde vemos as técnicas dos atores brilharem em cena. Uma preparação de elenco bem conduzida se reflete na harmonia e no nivelamento das interpretações, resultando em um elenco equilibrado e talentoso.
“Eu filmei sem roteiro na mão, plano-sequência… foi difícil, mas funcionou. Parece fácil, mas não é” – diz Tiago, confirmando o rigor técnico por trás de uma estética que parece espontânea. O que vemos é resultado de esforço coletivo, experimentação, abertura à improvisação e à criação compartilhada.
A origem do título também chama a atenção. Ele dialoga com a canção “Sou o Estopim”, de autoria de Antônio Barros, presente na trilha sonora do filme com a versão cantada por Marinês, carrega uma carga de tensão que imprime dramaticidade à obra. “Vi uma família tradicional do sertão se desmanchar, não sobrar mais nada além dos idosos. E aí a questão: quem vai cuidar de quem? Cada sequência parecia uma bomba prestes a estourar, daí veio o nome Estopim”, explica o diretor. Essa atmosfera está profundamente ligada à sua memória afetiva e ao compromisso de dar voz ao que o cinema convencional ignora. Conhecido por filmes como Remoinho e Cervejas no Escuro – já premiados em festivais -, Tiago constrói uma filmografia dedicada ao humano, às histórias que raramente chegam à tela.
Ao lado do Coletivo Atuador, referência na preparação de atores para câmera, o Cinema no Meio do Mundo reafirma sua essência: um cinema artesanal, visceral e de escuta. Estopim é um gesto de maturidade e afeto, onde teatro e cinema se entrelaçam sem hierarquias. Embora ainda esteja em processo de finalização, já pulsa como obra pronta. Resta ao público deixar-se incendiar por suas perguntas e reflexões.
Evoé!

Ficha Técnica – Estopim
• Roteiro e Direção: Tiago A. Neves
• Assistência de Direção: Raysa Prado
• 2ª Assistência de Direção: Juliana Moreira
• Preparação de Elenco: Cely Farias
• Assist. de Preparação de Elenco: João Vitor Santos
• Direção de Fotografia: Erik Clementino, Helder Bruno, Aderaldo Junior
• Arte: Erick Marinho, Gabriela Logrado, Wedna Tânia
• Figurino e Maquiagem: Itamira Barbosa
• Produção: Cinema no Meio do Mundo e Coletivo Atuador
• Som: Beatriz Monte, Romero Coelho, João Paulo Lima
Elenco: Ingrid Castro; Nica Bezerra; Osvaldo Travassos; Sonia Pontes; Mariah Pepe Cândido; Paulo Philippe; Joálisson Cunha; Kassandra Brandão; Itamira Barbosa; Israela; Gabriela Logrado; Emiliano Gomes; Cláudia Cavalcante; Flávio Freitas; Pedro Alves.



