Da página ao palco, a obra de Edvan Lima mostra como o Brasil transforma tragédia em entretenimento e humor em crítica.
Quando uma ideia nasce, ganha forma no texto, vida no audiovisual e depois se transfere para o palco, esse percurso já anuncia um deslocamento estético, pois é preciso recolocar ritmo, presença e público no centro da criação. O “Universo Galinha” nasce desse movimento, sendo uma adaptação originalmente curtametragista com “A morte da herança de Galinha” uma comédia popular que usa a farsa como lente sobre o Brasil contemporâneo. Edvan Lima, (autor da obra), detalhou o processo de criação explicando que primeiro escreveu o texto, depois originou o curta e então reelaborou o material para o teatro, nascendo, assim, “Herdeiros de Galinha”. A peça carrega marcas dessa travessia, pois começou de um exercício de oficina ministrada pelo autor e diretor, evoluindo para um grupo de montagem que aprendeu na prática a expandir material breve (do curta metragem) para longa duração. A estética audiovisual, presente nos recortes, no ritmo e na figura do apresentador sensacionalista, funciona como crítica à maneira como a mídia converte dor em espetáculo, incorporando esse mecanismo à própria farsa.
A obra parte de um motor dramatúrgico simples e potente: a morte forjada de Manel Galinha transforma um velório em espaço de disputa pública, criando o ponto ideal para explorar ganância, fé, preconceito e o próprio teatro-mídia. Essa escolha formal, uma comédia de situação que se inclina à farsa, dialoga com a tradição brasileira da comédia de costumes, herdeira do dramaturgo Martins Pena e sua habilidade de transformar hábitos sociais em sátira. Edvan assume as inspirações com franqueza, e a transposição do curta para um formato próximo ao das sitcoms e dos textos de comédia de situação integra conscientemente o projeto estético. Essa costura entre a linguagem audiovisual e o teatro popular produz um duplo efeito: renova o repertório cômico e, ao mesmo tempo, tensiona o ritmo das cenas, exigindo maior precisão nos cortes e nos impulsos do elenco. A referência a nomes da comédia televisiva, como Miguel Falabella, revela o desejo de falar a linguagem da massa sem rebaixar a densidade crítica.
A peça mobiliza esse riso elástico para tornar visíveis o conservadorismo, a hipocrisia religiosa e as microviolências do cotidiano. Em um ensaio aberto para convidados realizado na última sexta-feira (21) no Armazém do Campo, em João Pessoa, algumas questões se destacaram nas cenas de confronto e nas máscaras sociais que os personagens mobilizam. Dramaturgicamente, o espetáculo equilibra forças, e isso se revela na construção coletiva derivada das oficinas e dos treinamentos, que dá densidade ao elenco e se manifesta na coesão de determinados núcleos, na presença de personagens emblemáticos que sustentam a arquitetura cômica e no humor polifônico que alterna sarcasmo, paródia e grotesco, fazendo com que o riso opere tanto como catarse quanto como incômodo crítico.
No conjunto, o ensaio aberto revelou um projeto com pulso crítico e apetite popular, uma comédia política que não teme apontar para estruturas de poder, fé e moral, mas que ao mesmo tempo reconhece a força da comicidade popular como modo de pensar o mundo. “Herdeiros de Galinha” tem potencial para ocupar um lugar relevante no circuito nordestino, não apenas como entretenimento, mas como dispositivo de reflexão coletiva.
Em última instância, a obra confirma uma hipótese simples e necessária: rir não nos torna menos sérios, ao contrário, quando bem articulado, o riso é arma e espelho. “Herdeiros de Galinha” já demonstra intenção de manejá-los, partindo da comicidade para tensionar o que há de mais sério na cultura brasileira, nossas contradições familiares, políticas e afetivas. Agora, resta acompanhar seus próximos passos rumo à estreia oficial!
FICHA TÉCNICA
Texto e direção: Edvan Lima
Cenário e luz: Alêssa Bruna
Elenco: Igor de Assis, Itamê Jr., Rhaissa Martins, Ryan Batist, Pedro Augusto Pinangé e Vinícius Teodósio | Realização: Edvan Produções




