Sob o efeito do morar: Morgana Souto Maior entre raízes, memórias e contemporaneidade

Por: Sarah Cristinne Firmino

FOTO: Equipe Tocaia

Caro leitor, acredito que por muitas vezes na vida você já ouviu que “morar” é mais do que habitar uma casa. É experimentar um espaço como território de afeto, de identidade e de memória. O antropólogo francês Marc Augé, lembra que os lugares são constituídos por história e relações, enquanto os “não-lugares” se configuram como espaços de passagem, sem vínculos duradouros. Talvez pouco reflitamos sobre a influência que as nossas raízes (os lugares de onde viemos) exercem sobre os nossos frutos (os nossos gostos, influências, sentimentos e ações).

E uma ótima oportunidade de pararmos para refletir sobre esse entrelaçamento entre permanência e trânsito, entre memória e atualidade, é na exposição “Sob o Efeito do Morar”, da artista Morgana Souto Maior, disponível até o dia 14 de setembro no SESI Museu Digital, em Campina Grande.

Nascida em Campina Grande, Morgana iniciou sua trajetória pela arquitetura, área na qual se formou antes de assumir plenamente a linguagem das artes visuais. O olhar arquitetônico ainda permeia sua obra: a preocupação com escala, espacialidade, cores e a relação entre corpo e ambiente é perceptível em cada instalação ou pintura.

Sua carreira ganhou corpo no Rio de Janeiro, onde viveu por anos, dialogando com uma cena artística mais ampla. A partir daí, expandiu-se internacionalmente: participou de mostras coletivas e individuais, chegando a expor no Carrossel do Louvre, em Paris: um espaço de circulação de artistas do mundo inteiro. Essa experiência global, porém, não a afastou de sua terra. Ao contrário: reforçou a necessidade de voltar às origens. Ao seu lugar.

“Mesmo quando expus em Paris, eu sentia que faltava minha terra me chancelar. Estar em Campina é como ouvir do pai: pode ir”, conta a artista. O retorno à cidade natal não é apenas uma visita, mas um gesto de reafirmação de pertencimento e reconhecimento das raízes culturais.

Um dos signos mais fortes da obra de Morgana é a bandeirinha de São João. No início, um detalhe gráfico; depois, tornou-se sua marca pessoal. Em uma percepção aguçada, o desenho representa um “M”, que a identifica. O gesto ecoa diretamente o legado do pintor ítalo-brasileiro Alfredo Volpi, mestre das bandeirinhas, que elevou o símbolo popular à pintura erudita. Mas há uma diferença crucial: se Volpi partia do cotidiano para transformá-lo em linguagem moderna, Morgana reapropria a bandeirinha devolvendo-a ao seu território de origem: o Nordeste, onde esse signo nunca deixou de pulsar.

“Com o tempo, percebi que o meu ‘M’ era também uma bandeirinha. É um símbolo popular do Nordeste, mas também uma base, uma estrutura”, explica. Sua obra costura casas, portões, telhados e cores como se guardasse a memória coletiva nordestina.

Outra dimensão forte do trabalho de Morgana que me desperta especial atenção é o acesso. Ela recusa o mito da arte intocável.

“Criou-se um mito de que a arte não pode ser tocada. Eu faço questão de permitir esse acesso. Se quiserem tocar, podem. A arte precisa estar no cotidiano das pessoas”, afirma.

E que bom ver esse movimento acontecer. Antes dessa exposição, anos atrás, Morgana fez uma intervenção nas ruas de Campina que inverteu bem esse paradigma da arte ser coisa cara, inacessível, distante. Ela levou a sua arte para a feira, para o açude de Bodocongó, para o São João, para a rua, fazendo com quê as pessoas que nunca tocaram numa obra de arte pudessem tocar, sentir, ver de perto e fazer parte. Sua produção é também um ato de democratização cultural. 

 “Mais do que ver, quero que as pessoas vivam minhas obras. Que toquem, que sintam, que se reconheçam. Porque a arte também é um lugar onde a gente mora”.

FOTO: Equipe Tocaia
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O processo criativo da artista paraibana também revela uma dimensão ecológica. Muitas de suas obras utilizam tintas descartadas por escritórios de arquitetura, transformando o que seria rejeitado em material artístico. A escolha vai além da crítica ao mercado: ela opera como gesto de permanência. O que seria lixo, descartável, torna-se memória e arte. É uma maneira de dizer que o trânsito pode se tornar eterno, e que a estética também pode nascer do que foi abandonado. Em sua produção, Morgana não se restringe a uma técnica. Ela pinta, desenha, borda, costura, recorta e cola, experimentando suportes diversos para traduzir suas memórias, criações e afetos.

A mostra tem a curadoria atenta e afiada de Kelma dos Anjos, que ressalta como a artista cria narrativas visuais capazes de transformar memória em presença, e intimidade em experiência coletiva. O resultado é uma produção que não se fecha em identidades fixas, mas se abre ao movimento, à circulação, ao diálogo entre tempos e espaços. “Sob o Efeito do Morar” não é apenas uma exposição para ser vista: é uma experiência para ser sentida e habitada. E ainda dá tempo de viver essa imersão!

FOTO: Equipe Tocaia
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SERVIÇO:

Exposição: Sob o Efeito do Morar – Morgana Souto Maior.

Até: 14 de setembro de 2025.

Local: SESI Museu Digital – Av. Deputado Álvaro Gaudêncio, 201, Centro, Campina Grande – PB.

Horário de visitação: terça a sexta, das 9h às 17h; sábados, das 13h às 17h.

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